Crystal adorava trocar selfies com os amigos. Com frequência, porém, ela se detia por um instante antes de enviar suas próprias fotos: "Não conseguia parar de olhar como o filtro do Snapchat mudava o meu rosto", disse à BBC.
Clara Moreira Lima Marigo
Da BBC Three
5 maio 2018
"Ele definia meu queixo, delineava as maçãs do rosto e deixava meu
nariz mais reto, o que sempre me fazia sentir um pouco insegura", conta a
assistente médica de 26 anos, de San Diego, na Califórnia (EUA).
Crystal, diz que às vezes conseguia um aspecto semelhante usando
maquiagem, mas que não tinha tempo de "se pintar" todos os dias para
chegar ao mesmo resultado.
Em uma tentativa então de ter o rosto parecido de fato com a versão que
via com o filtro das flores do Snapchat, ela decidiu fazer preenchimentos no
nariz e embaixo dos olhos.
"As pessoas não percebem que eu me submeti a um procedimento. Elas
pensam que eu perdi peso ou algo do tipo", diz Crystal, que agora se sente
feliz compartilhando selfies sem filtros.
Ela faz parte do crescente número de jovens que buscam em procedimentos
estéticos um caminho para ficarem mais parecidos com as selfies que tiram.
De acordo com um novo estudo da Academia Americana de Cirurgia Facial,
Plástica e Reconstrutiva, 55% dos cirurgiões plásticos faciais atenderam em
2017 pacientes que queriam passar por cirurgias para aparecer melhor em
selfies, em comparação com 13% em 2013.
O estudo também identificou que 56% dos cirurgiões pesquisados notaram
um aumento no número de clientes com menos de 30 anos de idade.
Expectativas mais realistas
Muito tempo atrás, os clientes chegavam às clínicas dos cirurgiões
plásticos com fotos das celebridades com as quais queriam parecer.
Agora, trazem fotos de si mesmos, disse o cirurgião David Mabrie,
baseado em São Francisco, considerando essa mudança de comportamento "um
avanço".
"Eu prefiro trabalhar em cima da foto da própria pessoa, porque
assim se tem uma ideia melhor de como ela vai ficar com preenchimento ou
botox", diz Mabrie. Foi ele o responsável pelo tratamento de Crystal.
"Assim a pessoa não tem uma expectativa pouco realista de que, como
em um passe de mágica, vai se transformar em uma Kylie Jenner",
acrescentou, em referência à estrela de reality show americana e irmã caçula da
socialite Kim Kardashian.
Alguns pedidos dos clientes, porém, continuam impossíveis de atender.
"Alguns filtros aumentam os olhos, algo que não pode ser feito com
cirurgia", diz ele..
É por isso que é fundamental fazer uma boa consulta. "É importante
que o seu cirurgião seja realista com você e não apenas faça uma lista do que
você quer."
Nova dismorfia em ascensão
Filtros tiram "imperfeições" imagem:www.mileworld.com |
Ao mesmo tempo, o uso de redes sociais parece ter um impacto negativo na
autoestima. De acordo com um estudo de 2015 do Escritório Nacional de
Estatísticas do Reino Unido, 27% dos adolescentes que usam mídias sociais por mais
de 3 horas por dia apresentam sintomas de problemas de saúde mental.
A combinação desses fatores talvez explique o surgimento da chamada
"dismorfia de Snapchat".
O termo foi criado pelo médico britânico Tijion Esho, que tem várias
clínicas estéticas no Reino Unido.
Não se trata de uma doença oficialmente reconhecida, mas de um fenômeno
que preocupa especialistas em saúde mental, assim como alguns cirurgiões
plásticos.
"Agora vemos fotos de nós mesmos diariamente nas plataformas
sociais que usamos, algo que pode nos tornar mais críticos de nós mesmos",
explica Esho, que diz já ter recusado atender pacientes que pareciam
demasiadamente obcecados em parecer com suas fotos com filtro.
Segundo o médico, essas fotos são boas como referência. "O problema
é quando elas se tornam mais do que uma referência: se transformam em como os
pacientes veem a si mesmos ou quando querem se ver exatamente como nessas
imagens. Isso não apenas é pouco realista, mas potencialmente um sintoma de
outros problemas subjacentes", opina.
"Mais perguntas deveriam ser feitas para descartar os aspectos da
dismorfia corporal. Operar aqueles que apresentam esses sinais de alerta não é
apenas antiético, mas também prejudicial ao paciente, pois ele necessita de
algo que nenhuma agulha ou bisturi poderá corrigir".
'Só precisava de um empurrão'
Kacie, de 29 anos, é uma das pacientes de procedimentos estéticos que
quer parecer mais com as selfies que obtém com o uso de filtros.
O que mais a preocupava era o que seu namorado pensaria quando a visse
pessoalmente, depois de ela ter enviado dezenas de selfies por dia para o
celular dele e de atualizar suas fotos no Instagram entre 10 e 15 vezes
diariamente.
"Eu punha a coroa de flores e aquele focinho de cachorro e me via
tão linda nas fotos…e depois me olhava no espelho e pensava: 'ah, essa não é a
pessoa que ele vê todos os dias na tela'", diz ela.
"Eu ficava frustrada quando me olhava no espelho. Sentia que não
era como a pessoa que eu apresentava ao mundo". E continua: "Eu me
sentia atraente com os filtros do Snapchat. Só precisava de um empurrão para
chegar a esse ponto (na vida real)".
Ela procurou um cirurgião plástico em sua cidade natal, Nova York, e
acabou fazendo preenchimentos nos lábios, no queixo e nas bochechas, por
aproximadamente US$ 1.700 (o equivalente a R$ 5.760).
Kacie planeja fazer isso mais ou menos uma vez por ano, já que os
preenchimentos duram de 6 a 18 meses.
"Eu penso: é a minha cara, é o meu dinheiro, e, se o resultado
geral é que eu tenho mais confiança em mim mesma e estou mais feliz com o que
sou, qual é o problema?"
Sensação de 'não estar à altura'
Andrew, um inglês de 31 anos, recorreu a uma consulta estética após um
rompimento amoroso.
Quando queria voltar a sair com outras pessoas, ele sentia que não fazia
sucesso nos aplicativos de encontros.
"Eu sempre quis ter a mandíbula e as maçãs do rosto com linhas mais
esculpidas."
"Para mim o interesse (nesse tipo de retoque) surgiu ao ver muitos
outros jovens fazerem aplicações ... Eu pensei: 'Como posso ficar mais parecido
com eles?' Eu acho que definitivamente tirar selfies com frequência e brincar
com filtros me fez mais consciente de não estar à altura", admite.
Andrew acabou não fazendo nenhum procedimento, mas diz não descartar
esse caminho no futuro.
A tentação de 'fazer algo mais'
A médica britânica especialista em estética Shirin Lakhani acredita que
há um verdadeiro potencial nocivo nesse fenômeno.
Ela percebeu um aumento no número de pacientes que buscam correções após
fazerem retoques para parecer mais com suas versões nas selfies.
"As redes sociais e as celebridades trazem todos esses
procedimentos para os holofotes", diz ela.
"Elas são vistas por um número cada vez maior de pessoas, que não
necessariamente podem pagar por eles (os procedimentos médicos) - mas que
acabam encontrando quem esteja disposto a fazê-los por um preço menor".
Mas, alerta ela, "esses são procedimentos que têm de ser realizados
por médicos".
As complicações de procedimentos malfeitos são raras, mas reais: entre
os efeitos colaterais do botox estão dificuldades respiratórias e visão
embaçada. Preenchimentos podem causar infecção e a "migração do
enchimento", quando a substância se move de forma imprevisível do local
onde foi injetada e pode chegar a bloquear vasos sanguíneos.
Esses riscos são o que fazem Annabelle, uma escocesa de 26 anos, não
querer nada além do que preencher os lábios.
"Eu venho fazendo isso a cada seis meses e sempre me pergunto:
deveria fazer mais alguma coisa? É tentador, especialmente quando posso saber
como eu me veria, graças a um filtro no Snap ou Insta. Mas me preocupo em fazer
coisas demais ou que isso saia do controle. Eu acho que você sempre pode
perceber quando alguém fez alguma coisa, mas não necessariamente porque ela
parece atraente ".
A psicóloga Ellen Kenner diz insistir para que as pessoas pensem duas
vezes antes de pedirem consultas para fazer preenchimentos, especialmente se a
intenção é fazer como um tipo de solução rápida diante de um problema na vida.
"A verdadeira autoestima tem a ver com a confiança em sua própria
mente para conseguir seus objetivos pessoais", diz ela.
"Isso requer honestidade, pensamento independente e a convicção de
que você é capaz e merece alcançar sua própria felicidade."
E esse tipo de confiança em si mesmo não pode lhe dar nenhuma coroa, nem
nos filtros nem na realidade.
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